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Hoje é sábado, 23 de novembro de 2024

Corpo de delito

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Sobre fundo branco, a logomarca da Agência Primaz, em preto, e a logomarca do programa Google Local Wev, em azul, com linhas com inclinações diferentes, em cores diversasde cores diversas
Silhueta de mulher, em um ambiente escuro, ilustrando a crônica "Corpo de Delito"

O corpo inerte no quarto escuro. Da fresta da janela, a luz tenta, sem sucesso, descobrir o cenário, agora, silenciado. Passos rápidos no corredor, na escada, uma porta que bate. A manhã demora a chegar e o corpo desperta de forma brusca, pedindo abrigo.

A água do banho dissolve o rímel-lágrima. Nem o pagamento foi deixado dessa vez. Sente a carne latejar, quase brasa. Já não pode mais pagar as contas. O jeito é sair antes de ser notada. Nessas horas, há sempre alguém como testemunha. Descrições perfeitas na reconstituição dos fatos. Enquanto os gritos lutavam contra as paredes do cômodo, ninguém por perto. “Talvez a televisão tenha abafado tudo”, murmura, ao mesmo tempo em que caminha até o aparelho para desligá-lo. Nem se deu conta da cena: uma mulher morre asfixiada por um véu mal colocado.

Há muitas vozes na rua. Gente que chega de festas, dos encontros esperados para o fim de semana. Ouve uma voz familiar. Um arrepio percorre a espinha dorsal. Paralisa. A dor é tão forte, que se deixa cair no sofá. Mantém o aparelho ligado. Não quer ficar sozinha. Pensa ter trancado a porta. Isso também não importa mais.

Depois de um tempo, volta a si, sentindo o peso de cada músculo. “Quantos ossos de ferro naquelas mãos?”, interroga o delegado da tela. Muda o canal. O repórter comenta sobre uma criança hostilizada na entrada de um hospital. Entre o grupo, alguém afirma que foi tudo consentido. Outro levanta um livro. Palavra sagrada. A cabeça lateja tanto que não consegue conectar bem todas as informações. Esforça-se para ver direito. Lembra da história de um homem protegendo uma mulher na rua. Foi num tempo bem distante, com outros costumes. Uma pedra ficou pelo caminho. A mulher seguiu. “Como era a história?”, deseja lembrar. Foi numa tarde que ela ouviu, entre outras meninas, que a vida, às vezes, repetia o mesmo filme para pessoas como ela. Ficou sabendo.

Fechou os olhos se perdendo no tempo. O pingar do relógio a confundia. Ainda era noite. Não ousava chegar até a janela. Precisava de um plano que a transformasse em sombra. Sombras são vultos imperfeitos. Deslizam na noite. Decidiu, então, rapidamente, juntar somente o necessário para sair de vez dali. Tudo lhe doía, também a alma quase desprendida da matéria, como se desejasse esquecer, completamente, daquele corpo quase decomposto. Tinha de ser rápido. Mais um pingar do relógio. Com a rua mais silenciosa, o perigo é iminente. Melhor deixar a televisão ligada. É um álibi.

Enquanto desce as escadas, escorando-se pesadamente, lembra da mulher no pronto-atendimento de uma noite qualquer. Manchas arroxeadas pelos braços, o lábio cortado, os olhos cheios, como se as pálpebras nunca mais fossem abrir. Uma voz encoraja seguir em frente. É preciso denunciar o que ocorreu. No entanto, alguém a examina e olhares sorriem, comentando da roupa, do cabelo, do jeito, da hora, daqueles sapatos, das unhas, dos traços. Não consegue ver todos os detalhes, embora saiba que é o próprio espetáculo.

Nada de hospital. Vê a porta. Pressente movimentos. Espera, sufocada pela dor da carne. Elabora a fuga. “A rua sempre leva a algum lugar.”, acredita. Segue para o fim da noite, sem véu, atestado ou parada. Sabe somente das pedras. “De repente, o tempo nem passou. É tudo do mesmo jeito. Sempre foi?”, pergunta a ninguém.

Picture of Giseli Barros
Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana
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