Muros
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Moravam na mesma rua. Cada casa com a sua rotina. Em uma das residências, ficou combinado de levar os filhos e oferecer carona para os filhos dos amigos. Às vezes, acontecia um rodízio. “A vida está muito corrida. Uma família quebra o galho da outra.”, disse o que teve a iniciativa, num fim de tarde, enquanto confraternizavam no quintal. Os sorrisos confirmaram uma espécie de irmandade. Durante a semana, a buzina no mesmo horário. Umas vozes mais animadas, enquanto outros ainda se arrastavam, como se carregassem consigo a cama ainda quente. Assim, diariamente, o motorista da vez aproveitava a primeira hora do dia já amanhecido, para reviver memórias juvenis.
Num retorno qualquer, de um dia qualquer, as crianças voltaram mais silenciosas. Contrariamente ao que ocorria, com todas as vozes muito integradas, o recreio não tinha transcorrido muito bem. Foi então que o adulto questionou os passageiros para quebrar o gelo. “Ele não quis ficar no mesmo time. A gente perdeu por culpa dele.”, falou em nome do grupo ofendido, enquanto o outro preferiu retornar em completo silêncio. Comemorou somente em casa. Disse que, na hora de fazer a escolha dos times, aceitou ser chamado pelo outro lado. Cada líder montava o seu time, apontando com o dedo para o grupo que estava na quadra. Aceitou e gostou de jogar. Fez gols, mas os colegas não aceitaram.
No outro dia, o mesmo silêncio.
A semana calada.
Aos poucos, o quintal ficou diferente também para os adultos. Alguém comentou que tudo não passava de bobagem de criança. No entanto, começaram a se dividir ali também. Sem combinação declarada, a buzina não passou na segunda-feira. No dia seguinte, já existia uma nova configuração das caronas. Vez ou outra, um carro emparelhava com o outro com o semáforo fechado. A confraternização escasseou. Perfis bloqueados nas redes sociais. Porém, houve o dia em que as crianças se misturaram na escola. Uma gincana relâmpago pôs fim ao estranhamento entre elas. Não precisaram, portanto, combinar como fariam na saída. Institivamente, se juntaram no portão. Os adultos se atrapalharam. Deram ordens. Os mais novos não entenderam. Comentavam, no retorno para casa, o resultado de um dia muito bom. “Veja só, meu filho, pensando bem, é melhor deixar as coisas como estão”.
Nos dias seguintes, houve protesto. Na saída, se um adulto tivesse algum imprevisto, um dos colegas ajeitava a carona, mas vinha uma desculpa qualquer. Compromissos de última hora. Uma consulta marcada. Pequenas viagens. O carro já estava cheio. E chegou o dia em que a brincadeira da rua passou a ser um grande constrangimento para os moradores. Uma bola não devolvida. Gritos de alguma casa. Muros cada vez mais altos. Cercas elétricas. Portões bem fechados. Nenhuma voz de criança se ouvia mais por ali. Todos os quintais fechados. Até mesmo transferências exigidas às pressas por adultos mais inconformados. Rixas estabelecidas ontologicamente. Silêncio. Cada um do seu próprio lado. Por rebeldia ou sabe-se lá, por puro bom senso, as crianças foram deixando as caronas de lado. Entre elas havia o consenso: “Nós podemos caminhar”.