Chinelinhos de asas
Os textos publicados na seção “Colunistas” não refletem as posições da Agência Primaz de Comunicação, exceto quando indicados como “Editoriais”
Compartilhe:
Era um dia chuvoso, neblinado e escuro. Trovões rasgavam o céu em diversos pedaços. Meu sapato e calça estavam encharcados. Subi as escadas do consultório com má vontade. Nunca gostei da aparência cinzenta e sem cor daquele espaço reservado a atendimentos médicos. Lembrei-me das paredes de um hospital e de uma clínica psiquiátrica. Sem cor, vazio de formas e identidade… Nise não se contentaria com a ausência de cores em lugares de tratamento da saúde mental, em que a cor é fundamental para os olhos e estado anímico. O olho é a janela da alma, do coração e das sensações. Dói-me a ausência de cores. Sons de trovões se misturavam à canção deprimente do som ambiente da clínica. Nenhuma revista ou livro para entreter o cliente. Ruí as unhas dos dedos. Fui até a janela. A neblina e a chuva se confundiam num bailado fantasmagórico e entediante. Num futuro indefinido seremos pó. Esta casa que não é histórica, vai mudar de dono ou de função. Olho de esguelha para a atendente, que se entretinha com uma revista de modas. Tentei puxar um dedo de prosa, mas me desanimei com suas frases monossilábicas, lacônicas e desinteressantes. Passaram-se vinte e cinco minutos. Não me importo de aguardar mais tempo. Olho o milagre da chuva, às vezes grossa, às vezes fina. Gotas que batem e surfam as pedras escorregadias do calçamento da cidade histórica. Gotas que encharcam passeios e pessoas. Enfeites de Natal em três sacadas de casas daquela rua… Recordo-me do Natal com meus pais. Parece que o tempo se escorrega das mãos da gente. Ninguém retém nada nas mãos! Hoje recordo-me de natais. Barulho de chinelinhos correndo na tábua corrida. Meu Deus, lembrei-me! Meu irmão mais velho colocava seus chinelinhos atrás da porta e, eu, nos pés. E é mágico, mesmo. Eu andava de um lado para o outro com os meus, no faz-de-conta de que meus chinelinhos criariam asas, para voarem junto com as renas. Patinar pela neve com meus chinelinhos cor-de-rosa, ao som dos repiques dos mesmos sinos, era meu sonho de menina. Móveis eram arrastados, enfeites tirados do fundo do baú. Uma árvore montada com ajuda de pai e mãe. Eu corria de um cômodo para o outro, para avaliar a ornamentação. Luzes na varanda. Meu irmão subia na grade, quase se estatelando no chão frio, com sua coragem irresponsável e impávida de encarar o perigo. Pudim, tortas, pratos salgados, peru e bebidas no forno e na geladeira. Época de doce de figo feito na panela de tacho, arrumação de casa, troca de móveis, colchas novas nas camas, toalhas bordadas nas mesas, árvore montada… Natal é época de estar com pessoas da família e com quem a gente ama. Eu enfeitava a árvore com bolas e guirlandas de alegria e gratidão. A árvore de Natal está em minhas ternas lembranças, neste coração meio sucumbido e surrado pela saudade. As portas da casa dos meus pais e avôs se fecharam. Das lembranças que trago na memória, tenho um estoque vastíssimo e precioso de árvores, guirlandas, bolas, laços de cetim e luzes… Tenho a missão de reacender todos os meus Natais em cada Natal, numa árvore repleta de enfeites, luzes, sons, cheiros e afetos guardados dentro de mim. Continua a chover. Meu médico chega. Entro, depois de chamada pela atendente. Eu que presumi que ele carrega todas as sombras dos seus pacientes nas costas, surpreendo-me com a pequena árvore de Natal montada no seu consultório, com guirlandas, bolas e luzes multicoloridas. Natal é mágico. Que ele venha forte até o fundo do meu peito, para fazer ressurgir a menina que me sustenta: a menina que não quer morrer e que todos os anos, na véspera do Natal, pensa em pôr os seus chinelinhos, para esperar que eles criem asas. Mais do que nunca, essa chuva, essa árvore sobre a mesa do médico me fazem voltar a correr, na imaginação, com meus chinelinhos cor-de-rosa todos os cômodos da minha infância! A menina de chinelinhos cor-de-rosa reabre a porta da casa dos meus pais e avôs!