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Hoje é quinta-feira, 19 de setembro de 2024

Uma artista

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Sobre fundo branco, a logomarca da Agência Primaz, em preto, e a logomarca do programa Google Local Wev, em azul, com linhas com inclinações diferentes, em cores diversasde cores diversas
Foto: David Peinado/Pexels

A camisa amarela, já surrada pelo uso, parece ainda feliz de outros tempos. Compondo a personagem, veste também uma bermuda larga de malha escura, calçando um par de chinelos bem gastos. Se alguém desejasse reparar, perceberia pés finos, com dedos ossudos, menores em relação à borracha suja e mais fina nos calcanhares. Com a cabeça descoberta, os cabelos escuros reluzem pouco no dia ensolarado.

No centro do pátio de um estacionamento comercial, uma voz conduz, animadamente, o evento. O som grave se espalha por todo o espaço, provocando outras vozes que se alteram, ao mesmo tempo em que se misturam em conversas distintas. De fora, o grupo parece um só, mas há vários deles organizados como pequenas irmandades. Faz parte do contrato social: associações que se revelam eufóricas com copos de cerveja, destilados e energético.

A música anima os presentes, que se preparam para o momento catártico do dia. No telão instalado em ponto estratégico, rodeado de barracas, a imagem é projetada para o início da partida de logo mais. Corpos se esbarram, enquanto, paradoxalmente, a bebida acelera os batimentos cardíacos, ainda que, aos poucos, os músculos entrem em estado de relaxamento. Entre iguais, ninguém percebe a figura desbotada que bebe de um copo esquecido ou de outro cedido, quase sem querer, em momento tão distraído.

Seus interlocutores ideais, em inocente desejo ou por pura alucinação do protagonista, são a plateia que nem o repara. Presença invisível, ainda que tão ousada, ensaia passos ritmados fora do compasso. Agita os braços com movimentos de malabares. Equilibra o mundo nas mãos. Seus braços finos suportam o peso da vida a ele preterida. No passado, aprendiz dos sinais fechados. Pulava as linhas tracejadas dos asfaltos, deslizando entre carros hostis. Às vezes, uma criança arrisca o sorriso para o artista mirim. O pai se assusta. Outros passam velozes. Na melhor das hipóteses, o cidadão fora da faixa contribui para uma moeda que rola, uma nota que voa do automóvel.

Artista da vida, vai se esquivando como pode. Encontra a dança do grito. Desvenda as letras graves da gramática potente de becos e vielas. Sem voz nascera, mas o corpo fala das cenas vividas e imaginadas. O corpo canta através dos seus movimentos largos. Agora, ali, é a sua grande oportunidade. Imagina-se no palco montado à sua frente. Projeta-se para além do telão ainda vazio. Ganha asas. Salta. Equilibra-se em uma das mãos. Ninguém o vê. Arrisca uma manobra mais ousada. O chinelo quase escapa. Súbito pensamento. Transforma-se em malabarista. Equilibrista no meio-fio. Mais um salto. Os chinelos chegam até as nuvens. Sorri largamente. Assemelha-se à criança dos primeiros anos. Poucos dentes na boca larga. Um dia, guardou o de leite debaixo do travesseiro. Fez um pedido. De volta, recebeu solavancos. Melhor a rua. Desfaz o pensamento intruso e arrisca um rodopio extravagante. Agita-se no círculo invisível entre as vozes que se voltam para o telão. Deixa a plateia extasiada. É um artista. Sabe disso. Terá um palco somente seu. Para o momento, é um dia feliz. O apito dá início à partida. Olhos no telão. Ele também agita a camisa amarela no meio da torcida.

Picture of Giseli Barros
Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana
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