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Hoje é sábado, 23 de novembro de 2024

Desordem

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Sobre fundo branco, a logomarca da Agência Primaz, em preto, e a logomarca do programa Google Local Wev, em azul, com linhas com inclinações diferentes, em cores diversasde cores diversas
Idosa, no sofá, pede ajuda a criança para lidar com o celular.

Ganhou o aparelho celular de aniversário. Da felicidade inicial, voltou ao sentimento de não pertencimento ao mundo que parecia existir somente para os mais jovens. Muitos comandos, tela sensível ao toque. Não sabia como pedir ajuda para aprender a usar o presente. Constrangida, pedia apoio ao marido. Ele, no entanto, sabia pouco. Fora o que sabia, não tinha paciência. Ela aprenderia com o tempo. Também não haveria nenhum problema em não utilizar um aparelho tão moderno. Ele estava convicto de que a rotina dela era outra. Acordava cedo para os afazeres da casa, recebia os filhos, os netos, uma tarefa da tarde. Era a mulher que ele conhecia.

Com o passar dos dias, foi perdendo a vergonha. Um neto, um filho mais paciente. Aos poucos, a alegria de fazer parte de um mundo conectado trouxe leveza para a sua rotina. O mundo cabia naquele pequeno objeto. Nunca havia se sentido tão próxima das pessoas. Participando de alguns grupos, a rede de comunicação ficou intensamente dinâmica. Mensagens carinhosas, poucas desavenças entre familiares, chamada de vídeo para ver um parente distante. Novos amigos pelas redes sociais. Nada lhe escapava. Empolgada, comentava sobre os últimos acontecimentos. Era incrível como tudo ali fazia sentido. Mas, certa vez, alguém discordou de uma informação compartilhada. Ela disse o que sabia. O discurso foi contundente. Veio a réplica do outro lado. E como não tolerava desaforos, enviou um áudio para deixar tudo bem esclarecido. Protestou. Não aceitava outras fontes inventadas. Desgastada da primeira batalha, bloqueou os contatos indesejados. O marido apoiou a decisão dela. Eles sabiam que o mundo estava caminhando para a perdição. Passaram, então, a selecionar tudo o que fosse necessário para salvar a família do abismo. Mensagens salvas para compartilhar no momento certo. Desfizeram de livros, antes que estes caíssem nas mãos dos netos. Em casa, algumas emissoras de televisão não eram mais permitidas. Em síntese, não entendiam como as pessoas estavam cegas ao óbvio. E, assim, a casa foi se esvaziando.

Nada de retrocessos. Estavam resolutos da verdade e nada mais importava. Iniciaram a participação em encontros virtuais. Por fim, veio o tão esperado convite. Aceitaram. Para a surpresa do casal, uma sala com muita gente e de todas as idades. Foi uma aula que tiveram. E voltaram diversas vezes. Assíduos, não perdiam sequer uma palavra. Ela anotava tudo, enquanto ele se vangloriava da memória. Estavam preparados para a luta. Iriam aonde fosse necessário. Fariam qualquer sacrifício para o futuro perfeito. Cada um em seu lugar. O mundo tem as suas separações. Sempre foi desse jeito. Nada lhes impediriam de reconstruir a moral perdida. E, assim, partiram. Ela fechou bem todas as portas e janelas. Por instantes, admirou o jardim impecavelmente cuidado. Chegou bem próximo da roseira predileta. Lembrou das manhãs em que gritava com uns maltrapilhos que tentavam pegar uma flor a caminho da escola. Valeria, porém, o sacrifício. Voltariam gloriosos. Ele teve medo da invasão da propriedade. Estes outros estavam por toda parte somente à espera.  Não acreditava na vigília do filho. Alguém tramaria alguma coisa em sua ausência. Assim, depois de muitas conjecturas, reforçou a segurança. Estaria monitorando pelo celular, para que ninguém colocasse as mãos no que fosse seu.

Seguiram afoitos. Convictos. Horas depois, alinhados com a suposta ordem, brandiam, gritavam. Em transe, capturando cada passo, cada objeto lançado, cada folha rasgada, cada cena gravada na tela e na memória. Estavam dispostos. Ninguém lhes tirariam o direito. Estavam todos conectados com a nova ordem. Estavam todos alheios ao mundo.

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Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana
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