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Hoje é domingo, 24 de novembro de 2024

Civilização torpe

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Foto: Paula Quiyahora/Pixabay

A cidade tão cheia nem repara nas dores que carrega. As ruas estão cegas, enquanto as pessoas transitam, maquinalmente, desvencilhando-se com passos duros. O compasso, marcado entre a aceleração, súbitas paradas e volteios de braços e cabeças, é regido por um maestro mecânico. Com o passar das horas, a coreografia perde componentes. O cenário se altera. Outros sons e luzes. A urbe fica mais lenta. Com um pouco de atenção, é possível identificar uma voz. Com um pouco de esforço, é até possível ver alguém.

No entanto, nem todos têm lugar. Alguns se escondem como podem. Há quem chegue sem saber bem o destino. Há quem esteja bem distante do seu lugar. Por fim, um ponto é sempre referência. Na existência de um banco, vem o desejo de breve descanso. Pouso rápido no frágil silêncio da cidade. Cansado, o corpo se recolhe. Instantaneamente, os olhos se fecham e a respiração aquieta a musculatura. Fragilidade. A mente não percebe o perigo.

Calor.

Muito calor.

Dor e entorpecimento.

O leito improvisado esquenta com o corpo em chamas. O homem grita. Pequena plateia em admiração mórbida. Os rapazes vibram diante do espetáculo. Desesperadamente, o corpo se agita. Alguém tenta ajudar. Agora, há pouco a ser feito.

Duro silêncio.

Cheiro de morte.

A cidade fica marcada para sempre. Mas, os dias retomam a cegueira. Ela segue hostil. Com o tempo, a indiferença. Com a distância, o esquecimento.

Virão outros. O espaço público rejeita o hóspede. Não cede lugar. Do outro lado, por sua vez, investidas cada vez mais severas. Ordem e progresso. O que vale é a civilização. Terra a preço de ouro. “Não há donos!”, é o endosso dado de terno e gravata. Agonia. Último sobrevivente aguarda direito a nada. Está morto. Manchete breve no noticiário. Apagado na memória da sociedade de controle remoto.

A máquina avança. Som surdo. Choro da vida estalando. Tudo empilhado e despachado a preço de ouro. Avança a ordem. “Viva o progresso!”, exaltam os salões cheios de pompas e promessas vazias nas telas eleitorais. Esvai-se a vida. Corpos minguam. Grito surdo da desnutrição. Civilização predatória. A criança chupa o seio murcho da mãe inerte. Ventre seco em terra próspera. Tradições ultrajadas. Séculos de corpos invadidos.

Cenário de guerra.

A cidade avança. Asfalto. Rodovias. Propagandas. Paisagens exóticas para o hóspede indesejado. Suga. Quer enfeites. Pose para o registro. É o país tropical. A terra em que tudo dá. Contudo, os corpos amontoam-se, amofinam-se. A fome entorpece os sentidos. A mãe ainda acolhe o filho sedento. A vida por um fio. O progresso a preço de ouro.

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Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana
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