Envelhecer dói?
Os textos publicados na seção “Colunistas” não refletem as posições da Agência Primaz de Comunicação, exceto quando indicados como “Editoriais”
Compartilhe:
Há algum tempo procuro
deixar a vida mais leve. É que não tem sido fácil, nada fácil viver nas redes
presenciais e digitais. Ficar mais leve nesse mundo impregnado de múltiplas
tarefas, informações, funções, algoritmos, curtidas, violência, ódio destilado em
qualquer esquina, é sentir o corpo acumular toneladas de gordura. Dias atrás me
falaram que um menino perguntou para uma senhora de cinquenta e poucos anos, se
envelhecer dói. Ela convidou o guri para prosear. São vizinhos. Fez uma bela
mesa de lanche, com quitandas, frutas, refrigerante, suco, café, chocolate,
doce, aveia… O menino sentou-se com os olhos vidrados nos quitutes. Nunca viu
tanta fartura. A senhora disse para ele se servir do que desejar. O menino se
apressou em comer. Comia bolo, bebia chocolate quente, falava de boca cheia,
jogando uns farelos do que mastigava sobre a mesa. A senhora só observava. O
menino ria, comia, falava umas frases sem finalizar a conversa. Voltava a comer
e, ao mesmo tempo, acessava o celular. Tirava fotos da mesa. Fazia self.
Publicava na rede. Mandava áudios para o grupo. Fazia reels, “lanchando na
casa da vizinha”. Criava stories com fundo musical e legendas do tipo:
“os que os olhos vêm, o estômago sente; amigos de uma vida (eu e ela);
quem quer, tirar os olhos?! Quintei na casa da vizinha coroa; altos papos;
viramos amigos…” A senhora olhava o menino. Nenhum susto com a atitude dele,
que ora marcava presença, conversando de boca cheia, ora se ausentava, tirando
fotos e postando na rede. Sorriu. Pensou: a juventude é veloz, intensa na
ansiedade de ver o relógio correr; tomar corpo; sair de casa; namorar, transar,
paquerar, casar; viajar; estudar, trabalhar… Velocidade em postar o que está
fazendo; compartilhar o feed; angariar novos seguidores, ter sucesso; aparecer,
existir, mostrar que está vivo; conversar com o espelho da tela; existir para
os outros para acreditar, de fato, na própria existência. Poxa, quanta camada
de “gordura” na pele para existir! Se eu continuar a relatar o caso,
vou para a área da autoajuda. Literatura não é uma espécie de cura? Curar-se
das mazelas da vida cotidiana, curar-se da desinformação, curar-se da falta de
ideias, curar-se da ausência de alteridade, curar-se do desencantamento,
curar-se do obscurantismo intelectual, curar-se da ausência de palavras e
assuntos. Então literatura é uma espécie de autocura… O menino lembra da
pergunta que originou aquela comilança prazerosa. “Então, dona, envelhecer
dói?” A senhora lhe disse: envelhecer não dói. A gente se sente mais leve,
que passa a comer menos; a gente anda devagar porque não tem mais pressa; a
gente prioriza cada instante; a gente acumula aprendizados e experiências; a
gente passa a prestar mais atenção nas pessoas; a gente aprende a pensar mais,
e falar menos; a gente aprende a julgar menos; a gente aprende que todos devem
respeitar as diferenças de idade e pensamentos; enfim, a pele fica mais frágil
é porque a juventude passa para dentro. A pele deixa de ser suporte ou cabide
da essência. Cada um deve viver o esplendor de sua idade. A gente aprende,
também, que a vida é sopro, instante, desafinamento que afina. A gente aprende
que vai, que o corpo vai, e só a alma fica. Alma não tem pele, cabelo, dores,
camadas de gordura. Por isso, a gente enruga, os cabelos vão ficando finos, ralos
e brancos. A gente aprende no último milésimo de segundo, que a eternidade é
minúscula, leve, simples e breve.
O
menino coçou a cabeça. Abriu a boca, deixando cair uns farelos de bolo. Disse:
entendi! Por isso eu como muito e ando rápido demais? Tenho pressa. É isto?
“Sim, menino, é isto…”
Inscreva-se nos grupos de WhatsApp para receber notificações de publicações da Agência Primaz.