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A primeira casa da rua já não é a mesma. Não é possível ver o quintal que acolhia as brincadeiras das tardes de verão, porque um muro alto encobre antigas memórias guardadas nos álbuns em uma gaveta qualquer.

Naquele tempo, havia alguns degraus de concreto e um portão baixo, feito de madeira. O muro, também de concreto, era sinuoso, e a meninada gostava de ficar ali, umas deitadas, como se escorregassem, outras sentadas nos pontos mais altos. Todas queriam ver quem subia e descia pela rua, tentando ouvir os pedaços de conversas dos adultos que se cumprimentavam e atualizavam as notícias do dia. Os adultos da casa e os que chegavam para o café costumavam aproveitar o sol, sentados no passeio, ao final da comprida varanda. Dali, vigiavam a garotada e eram felizes na prosa descuidada de dias comuns.

O quintal abraçava aquela morada, e as crianças por ali eram livres. Quando não chovia, o chão era logo marcado de cal, dividindo casinhas imaginárias e uma escola, enquanto, num outro canto, uma banheira velha servia de piscina. Os maiores lideravam e somente eles ficavam dentro d’água. Muitas árvores e um córrego, bem ao fundo do terreno, convidavam para aventuras inimagináveis. Os mais hábeis subiam para ver tudo de cima, e, às vezes, um ameaçava pular. Quando a mãe chamava, era preciso esperar um pouco antes de entrar, porque no fim do quintal era proibido ficar.

Alguns dias eram diferentes daqueles. Um adulto mais animado reunia a meninada para uma caminhada do outro lado da rua que parecia uma floresta. Subiam pelo caminho estreito até chegarem a uma construção de pedra. Por lá, corriam e brincavam de esconder. Depois de um tempo, o homem pegava a máquina fotográfica para registrar o tempo que sabia escapar das suas mãos. Ele também já havia subido pelos mesmos caminhos, se escondido entre as mesmas paredes de pedra. Também olhara para além do que o seu tempo de menino podia dali alcançar. Então, com a pressa própria da infância, todos se ajeitavam para a foto. Guardava-se o rolo e venciam a espera pela revelação. Algumas queimadas, outras embaçadas, poucas mais nítidas. E, assim, os álbuns iam contando o tempo. O bonito era ver como as crianças se detinham diante do papel mágico que contava as histórias das tardes das férias.

Durante o inverno, o mundo se limitava à varanda. Nos quartos, evitava-se a bagunça. Porém, quando a noite chegava e desejavam silêncio diante da TV, às crianças era permitido inventar o mundo edificado com lençóis e cobertores. Horas depois, o sono vencia um a um, formando uma fila de sonhos amontoados nas poucas camas.

O tempo da partida era o prenúncio dos dias escolares. A vida se renovava e interrompia os projetos com outras muitas tarefas, mas todos aguardavam o reencontro. Tanto futuro. A rua já não é a mesma. As fotos desbotadas contrastam com as novas edificações que escondem velhos caminhos. A primeira casa, agora, conta outras histórias. Ainda há passos conhecidos que, todos os dias, sobem, mais lentamente, a rua. Além disso, o quintal é mais silencioso, e, na hora do café, algumas vozes são possíveis apenas nas lembranças, quando, da janela, avista-se a construção de pedra, imponente e perpétua. A vida em seu curso natural e ininterrupto.

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Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana
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