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Hoje é sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Sonhos possíveis

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Foto: Amina Filkins/Pexels

Nos feriados, costumava ir para o trabalho da mãe, que pedia à filha para ajudá-la no serviço. Assim, terminaria o dia mais cedo e poderia adiantar uma costura, um pedido esquecido na pequena mesa que sustentava a máquina. Nesses dias, conversavam muito pelo caminho, economizando o dinheiro da passagem. Saíam com os primeiros raios de sol aquecendo a vida, depois do café fresquinho. A mulher fazia o mesmo trajeto há anos e sabia como deixar tudo no lugar, com perfeição. Próximas ao destino, distribuía as tarefas, explicando cada detalhe, e a menina caprichava, trabalhando calada. No fim da tarde, recebia um agrado que guardava para o lanche da semana, ou comprava um enfeite para o cabelo, uma coisinha qualquer que a deixasse mais bonita entre as amigas.

Gostava muito da escola. Era assídua e levava os cadernos meticulosamente organizados. A mãe tinha letra bonita e havia ensinado à menina como bordar o nome das matérias na primeira página. Agora, fazia o mesmo ritual. Orgulhava-se de mostrar os materiais impecáveis. Sabia bem das economias feitas para ter o necessário para estudar. O capricho era o pagamento. Acompanhava a mestra da vida com olhar atento.

Certa vez, após uma faxina muito pesada, percebeu a mãe mais cansada do que de costume. Ficou surpresa com o retorno silencioso e a máquina com os panos intocáveis. Pela primeira vez, faltou às aulas para cumprir uma tarefa extra. Precisava garantir o emprego da casa. Na aparência sutil de eventos corriqueiros, os imprevistos se tornaram presentes e ela passou para o turno da noite. A dona da casa agradecia pelo serviço bem-feito e fazia perguntas sobre o futuro. “Quero me formar”, respondia convicta. E a outra falava de uma oportunidade na loja. Era ali bem perto da casa. Poderia economizar no almoço. Já fazia parte da família.

Aceitou.

A mãe não conseguia definir bem os sentimentos. Retomou os afazeres com um pouco de dificuldade. A jovem conciliava o trabalho na loja e um apoio eventual na casa acolhedora. Entre as muitas tarefas, escondia as pequenas frustrações com uma roupa paga em constantes prestações. Ajeitava o cabelo, recolhia a mochila e torcia para que um professor não percebesse o seu atraso. Sentava-se, agora, na última carteira, perto da porta. E tudo ficou ainda mais pesado quando se viu sozinha. O caminho doloroso das idas e vindas. Os cadernos em branco, encostados para o próximo ano. Repetição cotidiana. Ininterrupta. Tentava, muitas vezes, acordar mais cedo e caminhar como antes. Refazia as conversas. Pedia conselhos. Só o silêncio. Aguardava os sinais, sem saber que a rotina era o sinal recebido sobre a possível chegada.

Atendia, vez ou outra, alguma antiga amiga da escola. Longa distância entre o sonho e o presente. Reparava na pele e no sorriso de quem contava as novidades. Descobria, atrás do balcão, namoros, noivados, casamentos, aprovações, formaturas. Foi murchando. A vida encolhendo. Esquivava-se. Treinou bem os ouvidos para reconhecer as vozes mais comuns entre os fregueses. Desse modo, nas datas mais prováveis, misturava-se ao estoque. Invisível entre panos e papeis multicores, perto delas, era infinitamente mais velha. Evitava, com todo o esforço possível, o olhar revelador. Irreconhecíveis olhos amendoados. Se pudesse, ficaria somente no auxílio dos afazeres domésticos. Nessas horas, vinha a saudade da mãe. Fazia força para esquecer. No entanto, não se acostumava. Por dentro, sempre inquieta. Tinha sorrisos na memória. Talvez, alguém adivinhasse. Propositalmente, num dia qualquer, foi esquecido um anúncio no balcão. Véspera de feriado. Era a respeito de um curso supletivo, ali perto. Recadinho com letra bonita, discreto, quase sussurrado, porque, de repente, pode dar certo ousar descortinar a vida.

Picture of Giseli Barros
Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana
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