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Prognósticos

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Foto: Liao Je Wei/Unsplash

Passou os últimos tempos em alerta. No entanto, desatento estava, quando, de repente, ouviu o som seco que vinha em sua direção. Tão rápida a ação, longa a espera entre os gritos circundantes, pouco tempo para dizer o que era urgente.

Quando era criança, vivia com os pais e a avó materna. Do pai, não se lembrava bem. Existia um vulto na memória adolescente, porque as mulheres sempre retomavam assuntos, principalmente, sobre a vida tão difícil sem a renda que garantiu o mínimo conforto dos primeiros anos. Não sabia o motivo da partida. Assunto proibido. Às vezes, acordava na madrugada, no quarto que abrigava os três. A mãe escondia os olhos, mas ele percebia os soluços abafados no velho travesseiro. Tentava uma resposta da avó, porém dizia que era um homem bom. E ficava, assim, um fantasma a vagar por ali. Quase presença.

Certa vez, encontrou um caderninho esquecido da mãe, no canto da mesa. Não queria ser surpreendido na ação, mas foi até ele e abriu o objeto com cuidado. Caiu uma foto desbotada. Achou estranhas as cores em tons de marrom, como se estivesse suja a fotografia. Passou a mão no papel áspero. Queria tanto perguntar sobre tantas coisas. Desistiu. O tempo encurtava. Descobriu passos que se aproximavam. Aproveitou o último instante para fixar o olhar no papel. Depositou o caderninho no lugar e deitou-se na cama. Fingiu dormir. Ela suspeitou. Evitou dizer. O coração batia-lhe em descompasso como se buscasse escapar do corpo triste. Ele não queria magoar a mãe. A avó foi servir o café da tarde.

Nunca mais se esqueceu da foto. Mirava a sua imagem no pequeno espelho do banheiro e procurava traços que os aproximassem. Sim. Era o pai. Tinha toda a certeza do mundo. Era ele. O que poderia tê-lo impedido de voltar? Se ela guardava uma fotografia dele, teria então morrido ou fugido com outra mulher? Em noites descuidadas, acordava assustado, como se alguém lhe tocasse o ombro. Sentia o hálito bem perto do rosto. Ouvia uma voz conhecida. Ele existiu. Tinha certeza. Moravam os quatro. E frases entrecortadas mexiam com as memórias do menino que teria um lindo caminho pela frente. Aquele homem havia trazido presentes no aniversário e no Natal. A criança tinha diante de si o futuro para escolher. Não seria qualquer um no mundo. Isso não aconteceria. Guardava ainda uma bola, um carrinho de polícia.  Velhos companheiros guardados na caixa de papelão.

O tempo passando, a mãe mais magra, a avó muito quieta. Chamou o neto numa manhã. Pediu-lhe para buscar ajuda. Sentia muita falta de ar. Ele foi. A mãe saía bem cedo. Não sabia bem o que fazer. Bateu nas portas mais próximas. Alguém atendeu. Correu. Era tarde. O silêncio passou a habitar o cômodo que abrigava mãe e filho. Ela já não conversava. Ele escutava murmúrios, o bater de panelas e via as latas ficando mais vazias. Ela chorava à noite sem esconder os olhos. Adormecia quando o sol acordava. Perdia a hora. Ele tentava ajudar. A escola mais e mais distante. Ficou, numa tarde, no meio da rua. Reconheceu um garoto. Voltou na tarde seguinte. Ficou.

Sentiu tanta saudade dela que correu para casa. Estava no tanque. Abraçou-a forte. Pediu-lhe desculpas. Quis muito ficar. Fez o que pôde. Rezava antes de dormir, implorou ajuda. Alguma coisa precisava acontecer no dia seguinte. Algum sinal viria. E ela adoeceu. Correu. Bateu em todas as portas. Um auxílio no primeiro dia. O remédio oferecido por um vizinho não resolveu. Precisava de uma consulta com urgência. Estava mais magra. Precisa de socorro com muita urgência. Sentou-se na calçada e chorou por ela. Veio a ambulância e a levou. Ficou dias em casa. Tinha medo de ir até o hospital. Viu-a chegar. Amarela. A pele descorada e bamba escondia os ossos. Precisaria de tratamento. “Por quanto tempo?”, ele perguntou. Não respondeu. Nenhum auxílio nas portas desbotadas. Lembrou-se da fotografia. Amaldiçoou aquele homem. Quis fugir dali para nunca mais voltar.

Demorou fora de casa. Voltou com remédio. Alimentou a mãe. Veio um homem para explicar o tratamento. Ela ganhou peso. Ele disse que estava trabalhando. A escola não tinha utilidade nessas horas. Nada mais faltaria para eles. Esperava que o sono pesado tomasse conta da mulher que convalescia. Ainda não tinha forças para saber de tudo o que acontecia na casa. Não podia sair e investigar. Ele chegava nos horários dos remédios. Deixava a comida pronta. Ela viu o semblante dele endurecer. Agora, de repente, no meio da rua. Trânsito intenso. Alguém o reconheceu. Gritou. Ouviu o estampido. Enquanto os olhos escureciam e o gosto quente e metálico escorria pela boca, ainda distinguiu o carro da polícia, outro, porém, bem distante daquele brinquedo da caixa de papelão, dos sonhos de um destino para sempre perdido.

Picture of Giseli Barros
Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana
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