Finais
Os textos publicados na seção “Colunistas” não refletem as posições da Agência Primaz de Comunicação, exceto quando indicados como “Editoriais”
Um cômodo da casa bem fechado. Ali guardava de tudo em prateleiras, armários e caixas. Para facilitar uma busca mais urgente, os envelopes e determinadas caixas eram etiquetados antes de tomarem os seus lugares no arquivo morto. Metódica, mantinha tudo separado por itens. Porém, para algumas regras, a exceção é a própria regra. Uma caixinha discreta era mantida na prateleira mais alta, quase escondida e sem identificação. Ela acreditava que, assim, estaria livre daquelas memórias. Limpava o local uma vez na semana, quando abria a janela do cômodo para que a luz renovasse o ambiente. Criou, desse modo, um ritual.
Na mesinha de canto, ao lado da cama, guardava um álbum com as fotos de toda a vida. Em datas especiais, compartilhava as lembranças com pessoas queridas, entre taças e diálogos que se repetiam. Talvez fosse assim com os outros também. Sozinha, conjecturava nas madrugadas sobre cenas passadas, histórias perdidas, ou ainda sobre a partida de alguém. Seria bem provável que, em tantas outras casas, houvesse caixas semelhantes às suas. Todos teriam um segredo, um desejo ou um arrependimento qualquer, dizia para si mesma.
Com insistência, contava com o esquecimento do que mais lhe aborrecia, sem perceber que muitos caminhos se encontram em dias imprevisíveis. Sabia que não era mais a mesma. Comparava a textura da sua pele com a de outros. Revia fotos, buscando algum tipo de alento. Escolhia a forma de sorrir, disfarçando o tempo. Inutilmente, driblava a própria consciência da finitude. Observava o semblante de velhos amigos. Procurava no outro o que ali não existia mais.
Numa tarde, remexeu em todas as coisas do escritório pessoal. Já estava na hora de fazer uma faxina e levar outros objetos para o arquivo morto. Foi à papelaria, aproveitando a folga do trabalho. Era um lugar agradável. Gostava de ver as novidades: canetas de todas as cores e modelos, blocos de notas e agendas. De lá, sempre levava um artigo a mais, mesmo que não fosse para uso imediato. Com a ajuda da atendente, caminhou até a seção de caixas e arquivos. O coração disparou quando viu uma delas cair à sua frente. Era aquela escolhida para o envio de um presente especial. Lembrou, então, do dia em que passou horas preparando cada detalhe. Fez o embrulho com cuidado. Não queria que algo se partisse na viagem. Embalou cada item com plástico-bolha. Na carta, a letra bem traçada. Recebeu, feliz, a mensagem de agradecimento. As linhas, em meio digital, foram lidas várias vezes. Tudo aquilo encurtava a distância entre eles. Planos bem discretos. Fios de esperança. Agora, a linha do tempo era imensa.
Ciclos diários com início e fim. Relativismos. Madrugadas em claro com outras projeções. Uma ou outra foto retirada do álbum. A caixa discreta ao final da prateleira. Deixou o lugar esquecido por algumas semanas. Nenhuma luz. Não saía da sua cabeça o incidente recente. A dimensão, as cores, o detalhe da tampa: tudo igual. Estaria ainda no mesmo endereço? Teria guardado ao menos a carta? Imaginava um cômodo qualquer com poeira e quinquilharias guardadas no objeto de papelão. Tamanha urgência lhe alterava os pensamentos. Buscava respostas depois da comunicação interrompida. Sentia-se imóvel. Notou o relógio parado. A parede é que parecia mover. Sentia náusea. Foi até o final do corredor. Abriu a porta. Forçou a visão para acostumar-se à pouca luz do ambiente. Respirou demoradamente e, da prateleira, retirou o que a incomodava. Abriu a janela, aspirou o pó e aproveitou a luz que a aquecia. Sem culpa alguma sorriu para si mesma. O final também era um novo começo.
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