Encontro de Histórias
- Andreia Donadon Leal
- 10/11/2023
Os textos publicados na seção “Colunistas” não refletem as posições da Agência Primaz de Comunicação, exceto quando indicados como “Editoriais”
Desaprendi a observar o que anda ao meu redor nesses últimos meses. Chove, mas não vejo os pingos da chuva no quintal. Há tempos não ouço carros na rodovia. Outrora, ruídos zombavam de mim. Vento bate plácido na janela. Sinto-o pousando na palma de minha mão. Meus dedos, manchados de tinta e betume, tocam um fiapo de chuva. Lixo os móveis da sala de jantar; não são meus. São de mãe. Tiro restos de cera e óleo de peroba. Sorrio, mas uma lágrima rola. Não posso pegar o tempo com as mãos. Cheiro a cadeira para relembrar a chegada do móvel à casa de minha mãe.
Há quarenta anos, eu e meus irmãos aguardávamos o móvel chegar. Era uma gritaria que “Deus nos acuda”, dizia mãe, enxugando as mãos no avental. Disfarçava, mas a ansiedade era visível no rosto redondo. Ninguém ousava arredar o pé da varanda. Pai não havia chegado do trabalho. Mãe assava minipizzas. Ia e voltava da cozinha. Dezoito horas, e nada! Era início de dezembro. Varanda enfeitada com luzes, árvore adornada com bolas coloridas, laços e flores. Presépio montado no carrinho-de-chá, que mãe acreditava que era de bebida. Nunca desconfiei que fosse de chá. O móvel era pesado, estranho. Servia de guarda-trecos. Duas gavetas pequenas, duas portas na parte inferior. Duas alças entalhadas compunham as laterais do móvel. Não tinha rodinhas, era um móvel imóvel. Não era carrinho de bebida, muito menos de chá. Não classifiquei até hoje o que era aquilo. Um móvel híbrido? Lembro-me que apesar de estranho, mãe gostava do trambolho. Isto bastava. Encheu de cupim, o móvel. Pai jogou remédio. Cupim sumiu por uns tempos. Voltou. Mais remédio. Novos cupins. Não tinha jeito. Cupim é praga que devora madeira! E madeira com cupim contamina outro móvel, de móvel em móvel, até as paredes cupim devora. O cômodo da copa era vazio, não fosse o carrinho de chá/bebida encostado na parede. Já passavam das dezoito, quando o caminhão chegou. Pai estava atrás, de automóvel. Meus irmãos saíram voando para a rua. Fiquei na varanda, observando o motorista, os ajudantes e pai carregarem as cadeiras. Era um luxo. Madeira maciça, encosto e assento de veludo verde-musgo! Mesa desmontada, carregada com todo cuidado. Não quis sair da varanda. Os homens montavam a mesa. Meus irmãos me gritavam. Fingia não escutar. Fazia de conta que a sala de jantar não tinha chegado. Fechava os olhos, cantarolava. Espiei o céu à procura de estrelas. Nada de luz natural. Uma luzinha piscava a cada segundo. Um avião passava. Vagaroso. Não sei quanto tempo permaneci sentada na cadeira da varanda. Levantei-me depois que mãe me chamou para comer pizza. Mesa posta. O móvel da sala era um luxo! O encosto das cadeiras era tão alto. Disse ‘pra’ mãe que as cadeiras eram da realeza. Todos riram de mim. Passei minhas mãos de criança nos detalhes da cadeira. “A mesa é enorme, pai!” Pai sorriu. Mãe olhava os móveis. Estava tão feliz. A meninada se achava importante, cada um sentado na cadeira alta. Éramos sete. Sobrava uma cadeira. Era para vó…
Lixei cada contorno das cadeiras, com as mãos firmes. Tirei as manchas do tempo. Cupim não ousou corroer nenhuma fresta de madeira. Móvel intacto por dentro. Por fora, ranhuras do tempo. Madeira esmaecida. Passei betume. Encerei. Uma semana de trabalho. Uma semana relembrando alguns encontros naquela mesa e cadeiras. Jogos de baralho, deveres de casa, jantares, comemorações, reuniões… O móvel foi para um local especial. Quase da idade do móvel da sala de jantar… Não sei. Sei que o tempo é sucessão ininterrupta de segundos, minutos, horas, dias… Mesmo assim, podemos proporcionar encontros de histórias. Um móvel de jantar confraternizava-se com família e amigos num espaço e tempo domésticos, agora, o mesmo móvel, creio, atravessará outros tempos num destacado espaço acadêmico… Passei minhas mãos pequenas e enrugadas em cada canto dos móveis… Começou a chover. Escuto o tamborilar das primeiras gotas de chuva no rosto.
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