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Hoje é sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Depois da chuva

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Pelas frestas da janela, o dia se fez anunciar. Era fim de madrugada, mas a nova estação já fazia questão de assumir o seu posto. Nenhuma novidade para um dia comum. Seria quente e morrinhento.

Levantou-se como fazia todas as manhãs. O relógio despertava sempre no mesmo horário. Como um hábito ensaiado, esperava a mente acomodar aos primeiros estímulos do corpo e saía da cama. Lavar o rosto, ajeitar o cabelo, preparar o café, comer, trocar a roupa, abrir as janelas, verificar a ordem das coisas. Em seguida, o trabalho. Mais uma jornada com os minutos contados. Anotações no celular para não perder uma reunião, um agendamento importante. Nenhuma novidade.

Abriu a porta da casa e sentiu o vento mais quente do que o da véspera. Teria escolhido bem a roupa? Teve dúvida, mas precisava ir. O tempo cronometrado para chegar exatamente ao começo de tudo. Repetições. Apreciava o silêncio matinal que antecedia as tarefas diárias. Parecia recarregar as energias, exatamente, nesses poucos minutos sem a interferência de qualquer pessoa. Sentia a calmaria da cidade que acordava, com ela fazendo companhia, nesses instantes tão preciosos de encontro consigo mesma. Era um ritual.

As conversas logo tomavam lugar. Alguém falava de um incidente da noite anterior. A criança febril, hospital e uma noite em claro. Atualizações de notícias. Outro comentava de uma discussão em casa. Não teria mais o que fazer. Cada um para o seu lado. A vida é assim. Certas coisas acontecem como têm de ser. Silêncio constrangedor. Nova interrupção. Celulares tocando. Tudo acordando.

12 horas. Metade. Calor. Da manhã de céu limpo, nuvens começavam a cobrir os espaços. Foi almoçar. Na volta, reparou as formas em algodão que dançavam sobre as casas antigas. Azul, branco e cinza. Se chovesse um pouco, talvez uma paleta de cores mais variada se formaria. Caminhou pela rua centenária. Chegou para o segundo turno. Novas vozes. Analisou a sua lista de tarefas e se concentrou no que precisava ser feito. Foi então que lembrou de que tinha uma hora marcada para aquela tarde. Não teria como adiar o compromisso, pois a esperavam. Fez os cálculos necessários. Olhou pela janela e viu tons mais acinzentados. Sentiu o vento úmido. Esperou um pouco. E-mails verificados, outras tarefas. Resolveu sair logo dali. Mais alguns minutos e chegaria com atraso. Arrumou a mesa e combinou alguns ajustes para o próximo dia. Ainda no pátio, brincou sobre a chuva que se aproximava. Alguém disse que melhor seria esperar o temporal.

Excepcionalmente, naquele dia, não desceu a rua, admirando as construções ou a luz da tarde que incidia pelo calçamento. Precisava ser rápida. No entanto, a chuva caiu com imensa força. Foi preciso parar. Tentou proteger a bolsa. Sentia o corpo molhar e não tinha como se proteger totalmente. Ventania. O céu parecia despencar. Não gostava do barulho forte, como se algo se quebrasse e viesse em sua direção. Encostou-se na parede de uma pequena casa. Havia alguns degraus perto da porta de entrada. Uma criança, vendo a enxurrada deslizar pela rua íngreme, fechou logo a janela. Talvez também tivesse se assustado com tanto barulho. Ela ficou ali, pensando que deveria ter seguido o conselho dado em tom de brincadeira. Suspirou.

Sem que pudesse se preparar para a ação seguinte, um homem apareceu na porta da casa, convidando-a para entrar. Agradeceu e disse que estava tudo bem. Ali, com a sombrinha aberta, fazia malabarismos com o pequeno objeto. Ele disse que ficaria encharcada, poderia entrar e se proteger da chuva que demoraria a passar. Rejeitou. Ele insistiu. Abriu mais a porta. Ela reparou que ele deveria ter mais de 70 anos de idade e o menino seria o seu neto. Na insistência do convite, resolveu ficar junto à porta da pequena sala. Ele disse que ela poderia entrar. Respondeu que estava tudo bem. A chuva, então, parecia ouvir o diálogo e começou a molhar a sala. Posicionou a sombrinha, tentando, de forma inútil, evitar o que já estava em curso. Ele voltou com um pequeno balde. Pediu para que ela colocasse o objeto no recipiente. Aceitou. Ele ofereceu um lugar no sofá. Sentou-se diante da criança. Ele fechou a porta e foi para os fundos da casa. Do outro sofá, o menino a encarava e, às vezes, ia até a janela para olhar pelo vidro o que estava acontecendo na rua. Foi então que um outro homem apareceu, vindo, silencioso, do final do corredor. Ela pegou o celular e tentou fazer uma ligação. Notou que estava sem dados móveis. Fingiu ligar assim mesmo. O homem mais jovem sentou-se numa cadeira que ficava entre o sofá e a porta. Ela não tinha como sair. Ele puxou conversa. O homem mais velho ofereceu um café. Ela respondia, fingindo naturalidade. Ele comentou com o filho que a mulher havia saído pouco antes do temporal. O filho repreendeu a atitude da mãe. Ela reprovou a própria atitude. Imaginava o que teria ao final do corredor. Casa antiga. Porão. Com mais cinco minutos, ligariam para ela. Estava atrasada. Sem sinal. Alguém teria visto o movimento da véspera?

O homem mais velho voltou para os fundos da casa, e tudo ficou em silêncio. O mais novo retirou o celular do bolso e começou a fazer algumas perguntas. Ela fingiu enviar mensagens também. Procurou uma posição estratégica no sofá. Queria sentir a presença de quem viesse à sua esquerda. O mundo desabava. O barulho externo encobriria vozes e gritos. Só alguns carros enfrentando a subida das pedras escorregadias. Calculou ações. O homem mais velho tinha passos muito silenciosos. Imaginou algo tocar-lhe a nuca. Ficou imóvel. Respirou aliviada. Ele tinha um relógio na mão. Fez questão de mostrar que era herança de família. A criança a encarava. De repente, pulou no sofá e abriu a janela. A chuva parecia diminuir. Nesse instante, agradeceu a hospitalidade e disse que realmente precisava ir. Estava atrasada. O pior já havia passado. Olhou para o chão. Próximo à porta, estava muito molhado. O homem mais novo deveria se levantar para que ela pudesse sair. Calculou mais uma vez o que deveria fazer e possíveis reações. A mulher não chegava. Não poderia chegar. Nem sabia da sua existência. Nenhuma das duas talvez existisse mais. O homem abriu a porta. Ela agradeceu. Sorriu para a criança. A porta foi fechada rapidamente. Desceu com a velocidade da enxurrada. No trajeto que ainda precisava encerrar, o vento gelado amenizava os seus pensamentos, enquanto a chuva completava a tarefa de lhe encharcar toda a roupa. Por fim, no local do encontro, ficou sabendo de uma ligação não concluída para avisar da impossibilidade da entrevista. Imprevistos. Pediram-lhe que desculpasse o contratempo. Evitaram olhar para a sua roupa. Do corredor, alguém ofereceu um café. Como estava bem perto da porta, recolheu a sombrinha e somente sorriu. O sol brincava lá fora.

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Giseli Barros é professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFMG, membro efetivo da ALACIB-Mariana
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